O neurocientista que está a trabalhar na ‘eliminação’ de memórias indesejadas

 

Ilustração© Ilustração de Alanah Sarginson

Pense na sua memória mais feliz. Um casamento, o nascimento de um filho ou talvez uma noite perfeita na companhia dos seus amigos. Retenha essa memória por uns instantes. Lembre-se dos pormenores. O que tinha vestido? A que cheirava? Como o fez sentir-se?

Agora faça o oposto. Pense numa memória triste – a perda de um ente querido, ser despedido ou uma separação dolorosa. Retenha também essa memória.

Qual preferiria conservar?

É evidente que quer a memória feliz, aquela que o fez sentir-se bem e contente com a vida. No entanto, as memórias dolorosas permanecem durante anos ou, por vezes, décadas, como feridas escondidas sob a superfície. Se pudesse escolher, quereria ficar com elas – ou apagá-las totalmente?

Se isto lhe começa a parecer-lhe algo saído de O Despertar da Mente ou Inception, fique sabendo que anda lá perto – e que Steve Ramirez concordaria consigo. Ramirez é um neurocientista da Universidade de Boston e Explorador da National Geographic, cuja investigação decorre junto à fronteira da ciência da memória. Talvez ele seja mais conhecido pelos estudos que ajudou a realizar e que demonstraram ser possível implantar uma memória falsa em ratos. As conclusões foram publicadas na revista Science em 2013 e na Royal Society em 2014.

A sua investigação assenta numa verdade fundamental: a memória é volúvel. Muda e transforma-se sempre que nos lembramos de algo. Ramirez compara isto com carregar em “gravar como” num documento de Word. Sempre que recuperamos uma memória, alteramo-la ligeiramente. Ramirez está a explorar a possibilidade de conseguirmos dominar esse processo de “gravar como” – reescrevendo intencionalmente as nossas memórias, em vez de deixarmos que mudem acidentalmente. Até à data, já aprendeu a fazer algo ainda mais surpreendente: não destruir uma memória má, mas criar uma memória nova.

A ciência de nos lembrarmos de algo que nunca aconteceu

“Nós sabemos que as memórias são maleáveis e susceptíveis a alterações”, diz Ramirez. “Sempre que nos lembramos delas, são gravadas e editadas com nova informação. Queríamos ver isso em laboratório. Porque se conseguíssemos fazer isso directamente no laboratório e no cérebro, conseguiríamos obter uma imagem de maior resolução de como as memórias funcionam quando estão a ser distorcidas ou modificadas.

O estudo fundamental da equipa foi publicado na revista Nature em 2012. Nesse estudo, os cientistas identificaram e activaram um aglomerado de neurónios no cérebro de ratos que codificou uma memória de medo, mais especificamente um choque ligeiro nas patas. Para tal, os investigadores alteraram geneticamente os ratos para que os neurónios relacionados com a memória se tornassem sensíveis à luz. Em seguida, as criaturas foram colocadas numa caixa e receberam um choque nas patas – fazendo com que a memória desse choque ficasse codificada nas células cerebrais sensíveis à luz.

Depois, a equipa implantou cirurgicamente um cabo de fibra óptica minúsculo no crânio de cada rato, para conseguir acender um laser dentro do seu cérebro. Quando acendido, o laser accionou a memória má como se fosse um interruptor.

Mais tarde, quiseram ver se conseguiam criar uma memória falsa. Para tal, colocaram o rato dentro de uma caixa segura e deixaram-no explorá-la. No dia seguinte, colocaram o rato numa caixa diferente, activaram a memória da caixa segura, acendendo o laser no seu cérebro, e deram-lhe um choque nas patas em simultâneo. Quando devolveram o rato à primeira caixa, ele ficou paralisado com medo – embora nunca tivesse recebido um choque naquela caixa.

A equipa implantara, efectivamente, uma memória falsa no rato.

“O elemento mais importante dessa experiência é termos demonstrado que conseguíamos activar artificialmente uma memória enquanto o animal estava a sentir algo. Depois, essa versão nova e actualizada tornou-se a última versão dessa memória gravada pelo cérebro do animal”, explica. “O rato ficou assustado num ambiente onde, tecnicamente, nada de mau acontecera.”

Dentro da sala de montagem do cérebro

Entre os lasers, as memórias falsas e as experiências com choques, poderíamos pensar que isto está a encaminhar-se para a ficção científica. Ramirez aceita a comparação, uma vez que o seu trabalho roça frequentemente esse universo. 

“Acho que a ficção científica e a realidade científica estão com o passo sincronizado, influenciando-se frequentemente uma à outra de formas surpreendentes e imprevisíveis”, diz ele. “Os ocasionais ‘erros’ da ficção científica são inevitáveis, mas o trabalho que inspira e os sonhos e visões que origina são praticamente ilimitados e eu adoro-a precisamente por essa razão.”

Mesmo assim, pode parecer assustador, sobretudo quando pensamos nas potenciais aplicações nos seres humanos. Contudo, Ramirez diz que a manipulação da memória seria realizada de forma muitíssimo menos invasiva nas pessoas. Em vez disso, quando queremos activar uma memória feliz noutra pessoa, tudo o que temos de fazer é perguntar-lhe sobre ela. (Lembra-se do início da história ou já se esqueceu?)

“Nós podemos actualizar uma memória aparentemente segura e torná-la negativa”, diz, referindo-se aos testes com os choques nas patas. “Mas e o oposto: conseguiremos transformar uma memória negativa numa memória positiva?

Apesar das comparações da cultura pop com Inception ou O Despertar da Mente, as aplicações do trabalho de Ramirez no mundo real são muito menos cinematográficas – e possivelmente mais profundas. O seu trabalho está a criar bases para ajudar pessoas com perturbação de stress pós-traumático a processarem memórias más ou pessoas com perturbações neurodegenerativas, como doença de Alzheimer ou demência, a viverem mais e melhor.

Num artigo ainda inédito, que se encontra actualmente a ser revisto por pares, a sua equipa afirma ser capaz de identificar o local exacto onde uma memória se irá formar no cérebro dias antes de ela acontecer. É como conseguir prever onde um raio vai cair antes de a tempestade sequer se formar. No futuro, isto poderá permitir aos médicos antever os efeitos da doença de Alzheimer, Parkinson e demência,antes de as doenças surgirem.

“Imagine ser capaz de fazer um mapa ao estilo do Google Maps para a memória, mas ao nível de cada célula cerebral”, diz ele. “Você poderia dizer: isto é uma memória positiva no cérebro. Fica neste sítio, nesta rede de actividade tridimensional. Podemos ampliar a área e se alguma coisa parecer estar a falhar, poderá ser um vestígio de algum tipo de declínio cognitivo, perda de memória, amnésia ou Alzheimer.’”

Ainda estamos muito longe de fazer um mapa ao estilo do Google Maps para a memória. No entanto, Ramirez sublinha que a sua área de investigação ainda está a dar os primeiros passos. Ele põe as coisas da seguinte forma: o estudo da neurociência tem cerca de cem anos, enquanto a física tem mais de 2.000 anos. “Relativamente à física, a neurociência ainda está na sua fase do Teorema de Pitágoras”, diz, gracejando.

Ainda há muita coisa que não sabemos sobre o cérebro e, consequentemente, sobre a forma como a memória funciona. Contudo, Ramirez e neurocientistas como ele estão a transformar a ficção científica em realidade científica, que poderá, um dia, permitir-nos editar e manipular as nossas próprias experiências. Mais importante do que isso, a sua investigação ajuda-nos a compreender as formas profundas como a memória nos molda – e como podemos começar a moldá-la.

Este artigo, publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com, faz parte da série A Sua Memória, Reprogramada, uma exploração de National Geographic sobre as fronteiras difusas e fascinantes da ciência da memória – incluindo conselhos sobre como tornar a sua própria memória mais potente. A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho do Explorador Steve Ramirez. Saiba mais sobre como a NGS apoia os seus Exploradores.

Comentários

Mensagens populares