Como é que o sistema imunitário sabe quando "atacar" ou "reparar"? A resposta está no intestino

 O intestino coordena as respostas do sistema imunitário, revela uma Investigação da Fundação Champalimaud, publicada na Nature Immunology. A descoberta, validada em ratinhos e confirmada em células humanas, sugere que os ritmos alimentares modernos podem desregular este sistema, contribuindo para doenças inflamatórias e cancros

Descoberta abre caminho para melhor compreensão de doenças intestinais, infeções e cancros© JDawnInk

Com cerca de 100 milhões de neurónios, tantos quantos tem a medula espinal, é o intestino - muitas vezes designado como “segundo cérebro” - que informa o sistema imunitário se este deve atacar os invasores estranhos no nosso corpo ou proceder à reparação dos tecidos. A descoberta resulta de uma investigação da Fundação Champalimaud (FC), em Lisboa, um trabalho publicado na revista científica “Nature Immunology”, e que permitiu detetar a interação existente entre os sistemas nervoso e imunitário no intestino de ratinhos de laboratório. Ora, uma vez que os seres humanos têm igual sistema de recetores, a descoberta pode abrir caminho para a compreensão de doenças intestinais, infeções e cancros de origem inflamatória.

O intestino é, de facto, capaz de funcionar autonomamente, desempenhando funções sem depender do cérebro. Mais: pelo facto de produzir neurotransmissores como a dopamina e a serotonina, que influenciam o humor, o sono e o bem-estar, o que acontece neste orgão tem influência direta sobre as emoções e processos cognitivos. “O intestino não é apenas um tubo que digere os alimentos”, explica Henrique Veiga-Fernandes, autor sénior do estudo e investigador principal do Laboratório de Imunofisiologia na FC. “É um órgão extremamente ativo, onde os sistemas nervoso e imunitário estão em permanente comunicação”, acrescenta.

A investigação fez luz sobre esta atividade imunitária no intestino, algo que se desconhecia, e descodificou a linguagem molecular que torna possível a comunicação entre o sistema nervoso, as células epiteliais (que formam o tecido que reveste superfícies do corpo, como a pele e o interior de órgãos) e o sistema imunitário. “O nosso sistema imunitário tem essencialmente de desempenhar duas funções opostas”, diz o investigador, que as detalha: “Eliminar células infetadas ou tumorais, mas também promover a reparação e regeneração quando os tecidos estão danificados". E era importante "compreender como é que o organismo decide entre estes dois caminhos tão diferentes”.

Como é que o sistema imunitário sabe quando "atacar" ou "reparar"?

Um neurotransmissor foi o principal responsável pela revelação, o peptídeo vasointestinal – VIP, na sigla em inglês (Vasoactive Intestinal Peptide) -, uma substância química produzida por determinados neurónios do intestino, que regula os movimentos do sistema digestivo, cardiovascular e respiratório. Ao colocarem nele o foco, os investigadores descobriram que as células epiteliais vizinhas possuem um recetor para este neurotransmissor, o chamado VIPR1, que funciona como uma espécie de antena recetora.

Neurónios da parede intestinal que produzem VIP, um neuropeptídeo que ajuda a regular as respostas imunitárias© Fundação Champalimaud

Quando os neurónios que libertam o VIP foram ativados nos ratinhos, verificou-se que as células epiteliais do intestino começaram a produzir citocinas – proteínas produzidas pelas células, especialmente do sistema imunitário, que sinalizam e mediam as funções celulares. A resposta imunitária desencadeada traduziu-se por um “modo ataque” do organismo, cujo objetivo é destruir bactérias e células infetadas ou tumoraisSaiba Mais

No entanto, quando os cientistas bloquearam o recetor VIPR1 nas células epiteliais, a reação foi diferente, tendo a resposta tipo 1 - a do ‘modo ataque’ - ter enfraquecido, abrindo espaço para uma resposta imunitária de tipo 2, encarregue de reparar os tecidos e combater os parasitas. “Esta foi a grande surpresa”, afirma Roksana Pirzgalska, primeira autora do estudo. “Percebemos que os neurónios do intestino não se limitam a ajustar a imunidade localmente, também coordenam programas imunitários completamente diferentes”.

Foi ainda possível concluir que os ratinhos que não apresentavam VIPR1 nas suas células epiteliais se tornaram mais vulneráveis a infeções bacterianas, como a salmonella, porém, mais resistentes a parasitas. Os investigadores comparam o funcionamento do sistema nervoso do intestino a um sistema de “agulhas em carris”, que ao analisar o ambiente decidem qual o percurso que o sistema imunitário deve seguir.HVF_4x5_Square (1).mp4Ativar som0Ver no Relógio

As células epiteliais constituem a primeira linha de defesa do organismo face ao mundo exterior, estando constantemente expostas a alimentos, microrganismos e potenciais agentes patogénicos. “Quando o ‘carril de ataque’ está ativo, as células imunitárias percorrem o revestimento intestinal e eliminam as bactérias e células tumorais. Quando o ‘carril de reparação' é acionado, o mesmo tecido concentra-se na regeneração, reconstruindo a delicada barreira epitelial que mantém os microrganismos nocivos no exterior”, lê-se no comunicado às redações.

“Descobrimos que estas células traduzem o sinal nervoso num conjunto de instruções moleculares, um cocktail de citocinas, mensageiros químicos que atuam no sistema imunitário”, explica Pirzgalska. “Podemos pensar nas citocinas como a linguagem que as células epiteliais usam para comunicar com as células imunitárias. Diferentes células imunitárias possuem diferentes recetores para estas citocinas, por isso, dependendo de quais são libertadas, o sistema imunitário sabe se deve atacar ou reparar”.

Horários irregulares e maus hábitos alimentares mantêm o sistema imunitário em "modo de ataque"

O estudo veio também desvendar que este mecanismo está relacionado com os nossos hábitos alimentares, e, consequentemente, com os nossos ritmos biológicos. Comer estimula a produção do neuropeptídeo VIP, uma relação que pode ser explicada através do ponto de vista evolutivo - a cada refeição há o risco da ingestão de agentes infeciosos, pelo que é ativado o “carril de ataque”,de modo a proteger o intestino. “O problema é que a vida moderna perturbou estes ritmos”, aponta Veiga-Fernandes.

“Quando as pessoas comem tarde ou trabalham em turnos ou horários irregulares, mantêm o sistema imunitário constantemente em ‘modo de ataque’. Isso significa que o intestino não consegue ter o seu período normal de descanso e reparação”, o que, segundo o investigador, poderá contribuir para um aumento das chamadas doenças civilizacionais – doenças crónicas e degenerativas associadas ao estilo de vida moderno – como a inflamação crónica, os distúrbios metabólicos e o cancro.

“Os nossos resultados sugerem que, quando os ritmos circadianos e os padrões alimentares estão desencontrados, o interruptor neuro-imunitário do intestino pode estar desajustado, impedindo que o intestino se regenere adequadamente”

Apesar de as experiências científicas terem sido conduzidas em ratinhos de laboratório, cientistas e médicos do Centro Clínico Champalimaud, incluindo Ricardo Rio-Tinto, gastroenterologista que integrou a equipa médica responsável por validar estes resultados em células e tecidos humanos, confirmam que as células epiteliais intestinais humanas também expressam o recetor VIPR1, sugerindo que este sistema de comunicação neuroepitelial se estende também aos seres humanos.

Veiga-Fernandes indica que “esta é a primeira prova clara de que os neurónios do intestino, que respondem a sinais comportamentais como a alimentação, podem coordenar diretamente as respostas imunitárias através das células epiteliais, não apenas localmente, mas a nível de todo o organismo”, pelo que Pirzgalska acrescenta que “é um excelente exemplo de como o comportamento e a imunidade estão profundamente interligados”.

A equipa de investigação está a aprofundar o estudo destes mecanismos, focando-se agora na analise da interação entre os sinais do cérebro e os circuitos neuroepiteliais ao longo do eixo cérebro-corpo de modo a identificar sistemas semelhantes eventualmente operados pelo sistema nervoso noutros órgãos, especialmente no contexto do cancro e da obesidade. “É cada vez mais evidente que nada no nosso corpo funciona isoladamente. O sistema nervoso, o sistema imunitário, o microbioma, o metabolismo, todos estão em diálogo contínuo, dia e noite”.

Texto escrito por André Sousa e editado por Mafalda Ganhão

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